Inês Norton
Exposição individual : HAPTIKOS
Galeria Uma Lulik
Texto de: Mitt Borás

O vive num bom apartamento, O é jovem, O é vegana, é criativa, não binária, gosta de desporto, gosta de yoga e diverte-se a descarregar, colecionar e partilhar no Instagram imagens de plantas que agradam a O e aos contactos de O. São imagens com um perfil botânico e claramente científico, como um Species Plantarum. O interessa-se apenas nas raridades formais, em espécimes exóticos e incomuns, com formas antropomórficas, fungos dos quais se extraem géis e insólitas flores hermafroditas; Clathrus archeri, Trametes versicolor, Laccaria amethystina. Entusiasma-se com os tentáculos dos Entoloma hochstetteri, com os simulacros fálicos dos Phallus indusiatus, os azuis da Lactarius indigo e as protuberâncias alienígenas do Hericium erinaceus. Quando O procura as suas imagens na Internet, O encontra um prazer erótico, mágico, quase orgásmico, que é para O um novo ritual ancestral. Lycra, música ASMR, sofá ergonómico, O acende o vaporizador com óleos essenciais de ylang-ylang e faz deslizar os seus dedos no iPad. Zaap… uma imagem… hipnotizada desliza a mão… fsssh… Prazeres digitais. Os seus dedos deslizam pelos jpgs de baixa, média e alta qualidade das árvores da floresta húmida javanesa. Desloca a sua mão pelo ecrã enquanto as imagens da natureza de sítios onde O nunca irá se agarram às suas unhas de silicone antes de entrarem e fazerem parte do seu arquivo. Por acaso, não sei, coisas do algoritmo, o Google propõe, no meio das suas plantas, imagens de mãos protéticas reminiscentes das extensões do Hydnellum peckii.

Está na hora, está na hora do ginásio que hoje há aula de meditação. As luzes estão apagadas na sala, apenas permanecem acesos alguns LEDs azuis entre as plantas de plástico. A mesma rotina, deitada, olhos fechados, o som de tigelas tibetanas sai do iPhone da professora. O relaxa profundamente, relaxa a mandíbula, os braços, o rabo, os pés, relaxa as pernas, relaxa-se toda e imagina-se uma ciborgue coberta por uma pele de borracha macia. Com o seu corpo sintético, O caminha afastando os ramos das árvores de uma floresta de sequoias e tocando com a sua mão protética tudo o que pode e que os seus dedos alcançam; toca a terra molhada, as árvores-da-borracha e a Heliconia. O imagina os odores, uma mistura mais ou menos equilibrada entre alguns eflúvios de sedimentos decompostos, um forte fedor de algas e nenúfares, pútrido e pantanoso, e suaves perfumes de flores tropicais. O acaricia tudo mas não sente nada, porque O, a meio caminho entre a porra da sala do ginásio e as selvas de Java, está viva e morta ao mesmo tempo. Respira profundamente outra vez, afunda os seus pés de ciborgue na lama.

A artista Inês Norton (Portugal, 1982) criou Haptikos para a galeria Uma Lulik, uma exposição individual com uma obra site-specific composta por um vídeo de 2’54’’ e duas instalações. No vídeo podemos ver uma mão coberta por uma luva cirúrgica de látex que move os seus dedos, reproduzindo os movimentos que fazemos habitualmente para visualizar o conteúdo dos nossos dispositivos eletrónicos com ecrãs tácteis, televisões, tablets e telefones.

A mão move-se lentamente, rítmica, relaxada. Os dedos deslocam-se de uma forma que oscila entre o comum e o sensual. As imagens do vídeo são acompanhadas por uma banda som produzida especificamente para este projeto em colaboração com o conhecido artista português Pedro Tudela. O som é ambiental, metálico, sintético e envolve a experiência com um halo que perverte e assombra as imagens.

Como uma nova representação dos mudras hindus, a mão de Norton move-se ao ritmo destes novos asanas, que aqui se apresentam como gestos para a meditação que fazem uso de posições que remetem para o universo da tecnologia. É uma coreografia de um neobudismo fictício que abraça a contemporaneidade, a ultramodernidade líquida. A mão de Norton evoca uma pós-espiritualidade que glorifica o progresso tecnológico e abraça o futuro.

Borrachosa, artificial, limpa, flexível, leve, nova, monstruosa, cirúrgica, escorregadia, compressível, sexy, imperecível, luminosa mas sinistra, macia como silicone e como látex. A obra da artista propõe uma união entre o religioso, o arcaico, o profano e o contemporâneo. A representação de novas formas de ritualizar a nossa vida. Somos testemunhas desta união simbiótica entre mudras e uma forma assética e clínica de nos relacionarmos com a realidade. A matéria mediada pelo sintético. Uma nova semiótica: mão, borracha, objeto.

No espaço insolitamente frio da galeria (há uma peça escondida que retira, joule a joule, a energia térmica da sala), o ar gelado é o trabalho da artista que nos toca e morde a pele. Dentro desta experiência, duas instalações completam a exposição. Na primeira, vemos uma caixa, um tabuleiro de água com aspeto clínico, polido, assético e sideral. Dentro, identificamos uma série de objetos esculturais impressos em 3D com formas ergonómicas ou mesmo anatómicas, reminiscentes do mundo marinho. Formas que evocam corais, formações minerais, estruturas brancas, ósseas, frágeis e sintéticas. Elas flutuam como se estivessem em suspensão naquele gel transparente dos ultrassons, um deleite gelatinoso e pastoso. A peça de Norton é um pequeno ecossistema que une o mundo do orgânico e mortal à ficção a que chamamos tecnologia. Não longe, no mesmo espaço, está uma concha de dimensões gigânticas em alumínio lacado com uma pequena e elegante pérola dentro. É uma exposição cheia, repleta de memento mori. Inês fala-nos de seres vivos e das suas qualidades orgânicas, da sua fragilidade e formas simbióticas, da sua adaptabilidade. A artista mostra-nos objetos monstruosos e inermes como uma alegoria de nós. O seu trabalho faz-nos sentir um certo prazer, um arrepio no confronto com o desconhecido, esse território fronteiriço para o qual caminhamos entre um mundo orgânico e seguro que se esgota, e os avanços do progresso tecnológico como paradigma do futuro em que entramos.

Please (do not) touch | 2019

Museu de Arte Contemporânea do Chiado

(Por Curadora e Directora do MNAC, Emilia Ferreira)

 

EM A FLOR DA PELE. O ERRO DE NARCISO 1 > EMÍLIA FERREIRA 1. PALAVRAS PRÉVIAS

À flor da pele é uma expressão que, durante longos anos, foi usada para descrever uma emotividade exacerbada. Algo mal visto num tempo que valorizava mais o puro intelecto do que as emoções. Mas hoje, que sabemos serem estas incontornáveis para a nossa capacidade de tomar decisões, ou seja, quando sabemos serem elas essenciais para um papel que pensávamos ser do puro domínio da razão (Damásio, 2012), como podemos pensar o simulacro do digital e a rejeição do corpo que hoje se expande, na multiplicação de imaginários assépticos? É esse o mote da exposição de Inês Norton, Please (do not) touch, que retoma, no MNAC, sob novos contornos, o foco da artista na análise da dialéctica entre os conceitos de natural e de sintético, avaliando as contemporâneas tensões entre ambos.

As frases que associamos à sedução e poder do digital (o mundo “à distância de um toque” ou “o mundo na ponta dos dedos”) tomam, nesta exposição, com objectos pal- páveis e um expresso interdito de tocar, todo um novo sentido. Neste caso, de negação
e lonjura. E, dado o contexto museológico que, desde o início da sua história o toma como imperativo, de ironia. Porque o museu é, tradicionalmente, um espaço de distância. O toque é vedado, por imposição de conservação preventiva das obras e, nesse sentido,

o sentido que a pele comunica perde significado em si mesmo. Please (do not) touch – em português, por favor, (não) toque – assume, por essas razões, uma dupla força e remete para a amarga ironia do nosso tempo: a distância entre corpos, o medo do contacto, a incapacidade de, pelo interdito, chegar ao outro de modo emotivo e profundo. Amarga, porque chegar ao outro sempre foi uma necessidade humana. Irónica, porque num momento em que o digital abre portas a uma mais abrangente globalização, o contacto e o encontro com o outro acabam por sair francamente comprometidos.

Além disso, vivemos também um momento histórico paradoxal, em que a privacidade (que levou séculos a definir, como tão expressivamente lembrou Bologne na sua História do Pudor, 1986) se esbate nos ecrãs de uma nova suposta vida social (e, mais uma vez, global). A pele, órgão que nos define e que continua a criar tantas barreiras à comunicação por constituir o primeiro e mais definido traço visível de cada um de nós,
é simultaneamente exibida, usada, resguardada e até escondida, assumida como tabu.
É nesse território antagónico, em que o vazio se inscreve de modo evidente, que se movem as 18 peças de Inês Norton que compõem a presente exposição. São elas “As a souvenir”, “Three doses of visual pleasure”, “Asseptic synesthesia”, “Immersive hug”, “Cutaneous identity”, “Contactless”, “Induced mutation”, “Intimate encounter, part I, II”, “Touch skin”, “Da tua pele, faço a minha”, “Collected by a toucher”, “Reciprocal experience of connection I, II”, “Ephemeral sync”, “Tactile revolution”, “The interlude of surface” ou “The skin you left behind”. Sublinhando a omnipresença da artificialidade, a artista confronta-nos com a presença da morte do corpo e da consciência, ou seja, da condenação essencial do humano.

2. INQUIETAÇÕES SOBRE O SIMULACRO

Cada objecto patente nesta exposição surge como uma etapa desse pensamento conceptual que nos vai proporcionando diversas seduções/provocações. Em “Three doses of visual pleasure”, somos confrontados com uma sedução táctil doseada e ministrada visualmente em embalagens, como que a recordar a necessidade de contenção face às solicitações do mundo real. Ao mesmo tempo, relembra o modo como o prazer do tacto é submetido à mera visualização, a um contacto marcado pela distância e mediado pela ciência, assepticamente controlado em laboratório, como na nova tendência da reprodução assistida (ASRM).
Além da frieza laboratorial, mais uma vez a ilusão de facilidade que o digital oferece, ultrapassando a distância física e operacionalizando formas de aceder a tudo, sem o confronto com os obstáculos da realidade (distâncias, tempo, intempéries, gastos), gera, ainda, outros problemas. Um deles, não menor, vira-se contra nós mesmos. Contra o nosso corpo e o modo como vivemos o mundo a partir desse corpo. Ao iludir a distância e o tempo (Han, 2013), faz-nos esquecer também a nossa própria mortalidade e tudo o que fizemos, ao longo de milhares de anos, para a contornar: o conhecimento e a criação. A passagem desse conhecimento num legado que faz do outro o destino do eu.
Inês Norton coloca estas questões em discussão, por via da questão da pele. E trá-las para um dos locais mais problematizados nos últimos tempos neste debate do digital: o museu. Na verdade, o digital tem servido para abrir sentidos ao museu, democratizando-o. Mas muitos se questionam se não tem, igualmente, criado a ilusão de que a deslocação para
o encontro (e, por vezes, para o confronto) com as obras originais já não é necessária, podendo ser, com vantagem, substituída pelo visionamento num ecrã, no conforto e segurança da nossa casa.
Nesta exposição em que o rosa domina (“misto de uma tentativa de aproximação ao universo ‘pele’, com a intenção de reforçar a artificialidade para a qual cada vez mais caminhamos e emergimos”, sendo “alusivo também a uma certa ‘sensualidade’ que
o tema evoca” — como explica a artista), a pele é sugerida por uma cor próxima do universo caucasiano ou por superfícies que apelam ao toque ou o evitam. De um modo ou de outro, toda a mediação é feita através de sucedâneos, obstáculos que se interpõem entre os corpos.
Pretexto para uma reflexão sobre as nossas prioridades e a nossa própria definição ontológica (quem somos?), esta é uma exposição em que as perguntas incómodas se sucedem, abordando o anti-desejo, o centramento em si, o medo e o simulacro do humano, num sentido mais pleno, que assim se torna descartável.

3. “AS A SOUVENIR”

Do ponto de vista do museu, o fragmento é uma presença regular. O museu iluminista de Setecentos, concebido como enciclopédia visual, complementou cultural e artisticamente o Grand Tour, na educação das classes altas europeias (Hooper-Greenhill, 2004, 559) e, de muitos modos, fê-lo através de fragmentos. Pinturas que representavam pontos de vista de paisagens. Fragmentos de corpos escultóricos ou arquitectónicos. Minerais. Apontamentos de viagem em textos, desenhos, gravuras. Mais tarde: fotografias, filmes, performances, instalações. Embora nunca tendo pretendido substituir o mundo, o museu encheu-se de presenças que se afastaram da vida pelo interdito do toque. Quando a viagem se democratizou, a pressa tomou o lugar do testemunho. E hoje a virtualidade (a preguiça? O desinteresse? O medo?) toma esse lugar. Estaremos cientes do faz de conta de uma caixa de acrílico com uma paisagem lá dentro e de um som que apenas nos chega por via de uma gravação? Essa peça de Inês Norton, “As a souvenir”, reafirma um aviso. Tudo se torna crescentemente problematizador, mais ausente no que à pele diz respeito. Já nada se reduz à flor da pele — expressão que devemos hoje analisar com atenção à sua significativamente expressiva fragilidade. Num contexto em que a pele desaparece, o que acontece às emoções? Quem passamos a ser?

 

4. VER E CONHECER (COM) A PELE

Tocar na pele é, como todos sabemos, tocar a primeira linha do espaço limite. A pele é a fronteira estabelecida entre o eu e o outro, após a mediação do olhar e até após
a mediação da palavra. O toque é o passo seguinte, é o quebrar da distância, é a comunicação e também a comunhão. Não se confundem os amantes quando os corpos se fundem — se con-fundem?

A pele não nos deixa mentir. A sua escrita é por de mais evidente. Nesse órgão que se renova inteiramente ao longo da vida, tudo aquilo que vivemos fica inscrito2 : o tempo que passou por nós, a nossa herança genética, a nossa saúde, os nossos hábitos e a nossa herança cultural (Jablonski, 2006, 2). Descartar a pele, na nossa relação com o outro, é descartar tudo isso, e ainda a nossa ligação mesma com o mundo. A relação entre pele e identidade fica clara na frase antiga “sentir-se bem na sua pele”. Essa adequação que reflecte uma identidade a um nível profundo, por ser o tacto o nosso sentido mais antigo e também aquele que é mais desenvolvido nos mamíferos, em particular nos primatas,
é também sublinhada pela expressão que usamos quando queremos conservar alguém nas nossas vidas e lhe dizemos “vamos manter-nos em contacto”3.
O toque, sendo embora cultural e variável – há culturas de não toque, como nos lembra
a antropóloga norte-americana Nina Jablonski (2006, 110-111) e essas são também aquelas em que os laços familiares são mais frágeis e a violência mais fácil é uma determinante ferramenta gnosiológica, pedagógica e terapêutica. Para nos darmos mais claramente conta do poder do toque, basta pensarmos no modo como se desenvolveram os castigos para o corpo, sublinhando a importância e o poder da relação com a pele.
Na verdade, da pele poderíamos dizer que nos dá a justa medida da adequação à comunicação ou da invasão do espaço privado, pessoal, físico. A pele é a medida da relação. E, pese embora as pontas dos dedos dos primatas – em particular do sapiens – terem uma sensibilidade particular, a verdade é que o nosso cérebro se desenvolveu na relação directa não apenas das pontas dos dedos, mas com outras partes do nosso corpo (mãos, rosto e pés, Jablonski, 2006, 99) e, a um nível mais complexo, com toda a superfície do nosso corpo. Neste segundo aspecto, basta pensarmos na quantidade de informação que a pele recebe e transmite. O toque está intimamente ligado ao nosso desenvolvimento como espécie. Não só porque nos permitiu escolher os frutos mais maduros e nutritivos (gesto que repetimos até hoje), mas porque a nossa pele reage ao mundo antes da nossa consciência, suando, corando, secando, eriçando pêlos, etc. Transmite informação aos outros (tornando, do nosso ponto de vista, também legíveis as emoções dos outros em relação a nós). É não apenas o nosso maior órgão, como é o nosso maior órgão sexual. Conhecemos e adquirimos intimidade através do toque (Jablonski, 2006, 110-119). Uma intimidade que apenas o olhar, a audição ou um ecrã nos recusam, limitando-se a oferecer uma cultura do fragmento e do afastamento.

5. UMA CULTURA DO MEDO?

Em “Cutaneous identity”, Inês Norton explora a questão do medo através da metáfora da segunda pele. Envolvendo pedras reais num tecido de camurça, a artista apaga
a realidade das pedras, o seu toque verdadeiro, a sua capacidade de transmitir a sua natureza, substituindo-a por uma natureza ‘outra’, que as adoça ao toque. Porém, esse adoçar comporta uma distância que é a do conhecimento. O toque no corpo real, tornado impossível, inviabiliza a passagem da informação. Pode tornar-se mais ‘fácil’, mas retira da realidade assim domesticada — alisada, para usar um conceito caro ao filósofo Byung-Chul Han (2015) — a sua verdadeira capacidade de conhecimento. Reflectindo sobre o afastamento do toque ‘real’, ao oferecer às pedras estas sucessivas camadas que nos afastam do contacto efectivo e afectivo com o mundo (e com o outro), Inês Norton critica precisamente a criação de um universo paralelo, fictício, mas assustadoramente presente, de uma natureza obrigada a desenvolver “uma segunda derme para se relacionar com os novos paradigmas”, como a própria afirma. Afirmação da ausência e da perda, e clamor pela urgência de uma clara tomada de consciência, as obras vão afirmando o seu lugar na exposição e reiterando questões.
Que sentiríamos se, de facto, as nossas mãos se tornassem alheias ao contexto, como meros produtos de supermercado, embaladas e devidamente protegidas por luvas de látex e envolvidas em película aderente, como em “Asseptic Synesthesia”? Que faríamos se as nossas mãos se tornassem inúteis, como é questionado em “Induced mutation”, simbolizando uma mão humana mutante para se adaptar à sua disfunção de usar apenas dois dedos (o polegar e o indicador, os mais solicitados para tocar e activar programas, enviar mensagens ou, quando usados em conjunto, para aumentar ou diminuir imagens ou textos à medida das nossas necessidades)? Que sentido encontraríamos na substituição da pele por simulacros, como se propõe em “Interlude of surface”, peça que resulta de várias “experiências formais em torno do conceito”, em que a pele é substituída por cetim?
Resumindo o toque ao digital e, simultaneamente, a uma certa noção de omnipotência do olhar, tudo se reduz a corpos ou membros amputados, seja em “Induced mutation”, seja nos dois momentos de “Intimate encounter” (I e II) em que o contacto se subjuga ao asséptico mediado, de novo, pelo digital que nos sanciona um determinado grau de intimidade. Em qualquer dos casos, o humano (deixado sozinho) apenas se pode relacionar com corpos sintéticos, digitais — à distância segura das pontas dos nossos dedos? Queremos mesmo que o digital substitua a pele e a informação que ela nos dá? Queremos mesmo que o digital (ou, noutra instância, um algoritmo, uma app) nos simule o mundo e dite o que sentimos? Em “Intimate Encounter II”, num espaço fechado, evocando as cabines de peep shows, uma aplicação oferece a simulação do toque e do som que este produz. O conceito de SLIME volta a ser explorado, numa sociedade em que se evita o toque de pele com pele, mas que não resiste ao toque a substâncias sintéticas e viscosas, ainda que muitas vezes digitais.

A referência à superficialidade das relações, na negação do toque, ou na sua mediação retorna em “Ephemeral sync” ou em “Touch Skin”. Sem a capacidade de ligações mais profundas, e com o culto da navegação rápida em inúmeras fontes de informação, o virtual toma o lugar da experiência real. Uma visão previamente construída por outros ocupa o seu lugar na nossa relação com o mundo, sem qualquer capacidade de avaliação da nossa parte. O simulacro ganha terreno a cada objecto com que nos confrontamos, a cada objecto coleccionado a que se dá uma nova pele (uma nova identidade), como em “Collected by a toucher”. O mesmo acontece de cada vez que a experiência de toque é negada ou reduzida ao (fetiche?) do látex (“Reciprocal experience of connection I, II”), de cada vez que plastificamos o corpo (afastando, nessa acção, o corpo do outro) ou que deixamos as máquinas mediarem os nossos corpos (“Contactless” ou “Immersive hug”) ou no modo como o abismo do consumo nos torna coleccionadores das peles alheias (“Da tua pele faço a minha”), como nos troféus escondidos dos sociopatas. A exposição assume assim um adentramento nesse caminho de aparente não retorno na perda de relação mais profunda, demorada e única com o real.

Queremos de facto criar mais obstáculos à compreensão, ao instalar um mediador completamente artificial entre nós e o mundo? Ou seremos capazes de reagir, num acto revolucionário de exigir o recentramento no nosso corpo, como na proposta resistente de “Tactile Revolution”? No final da exposição, “The skin you left behind”, um rolo de 10 metros de látex no mesmo tom rosado que atravessa a exposição na sua verosimilhança com alguns tons de pele mais claros, desenrola-se perante os nossos olhos. Como uma cobra que deixou para trás a sua pele velha, nós deixamos atrás de nós a nossa história, ao abandonar o órgão que mais nos distingue.

6. O ERRO DE NARCISO

Como aproximar o mundo mantendo-o à distância de uma barreira inultrapassável? Como amar e cuidar (nas suas múltiplas formas) sem celebrar os sentidos? O conhecimento depende — afirmou-o Kant e reafirmou-o a neurociência — dos sentidos. E depende de todos os sentidos e não apenas da visão, por mais que este seja a mais valorizada (e intelectualizada) das nossas portas para o mundo. O tacto (palavra que usamos também para representar a capacidade de descodificação da medida certa — ter tacto para alguma coisa é ter capacidade de análise, de avaliação, mas também de reacção adequada) é o que mais convoca o

 

 

INÊS NORTON

Do meu lugar, o que eu vejo | 2018

Quartel da Arte Contemporânea de Abrantes, Colecção Figueiredo Ribeiro

(Por Curador Hugo Dinis)

A artista Inês Norton (Lisboa, 1982) apresenta um conjunto de obras recentes e outras inéditas na exposição Do meu lugar, o que eu vejo. Através de uma panóplia de técnicas e meios artísticos, desde fotografia, escultura, vídeo ou instalação, a artista questiona pertinentemente, num tom entre o político e o poético, as controvérsias e consonâncias dos conceitos de natural e de artificial, ambos entendidos num sentido alargado. Por um lado, natural pode ser definido pela essência da natureza, ou seja, a vida das coisas e do universo. Nesta categoria encontram-se as plantas, os animais, a água, as paisagens naturais, etc. Por outro lado, o artificial pode ser visto como aquilo que foi construído pelo homem, ou seja, a sua marca e a artificialidade que adicionou ao mundo vivenciado. Neste caso, encontram-se os edifícios, os materiais sintéticos, os objectos, etc. Apesar de estes dois mundos se confrontarem em posições opostas e definitivas – o que é natural não é artificial, nem o contrário é possível –, existe um diálogo que se estabelece sempre no momento do seu encontro. Neste sentido, as obras de Inês Norton espelham a possibilidade desse choque que potencia a experiência sensorial e emocional, mas também intelectual e conceptual, perante as obras. Ao olhar para o mundo, numa estreita relação com o meio que a rodeia, a artista, perante uma experiência participativa do lugar, edifica estruturas que controlam e domesticam a natureza selvagem. Estas estruturas artificiais, provenientes de uma acção humana, aculturam as coisas naturais. A transformação da natureza em construção e a relação de ambas com este fenómeno de aculturação em dispositivos visuais revelam uma ironia e humor que implicam com os sistemas dogmáticos pré-concebidos, nomeadamente, as ideias sobre política ecológica e os objectos que se produzem com esse efeito. Assim, as obras contêm em si mesmas um lugar privilegiado que, em conceitos visuais e linguísticos, intermedeia a visão própria, mas não inequívoca, e a realidade percepcionada e sentida.

Os conceitos de natural e artificial podem ser desviados, respectivamente, para os conceitos de natureza e arquitectura. A palavra natureza vem do latim natura, que significa nascer no futuro, ou seja, a força que gera. Natura é a tradução latina da palavra grega physis, que significa a forma inata como crescem espontaneamente as plantas e os animais. Neste sentido, pode-se considerar que quando se trata de natureza na arte, esta deve ser vista como a possibilidade de criar novas visões ou novos mundos que permitam a possibilidade de algo acontecer. Mas esta procura deve compreender que existe algo de natural, ou próprio, nos objectos, que encontra uma fenda para aparecer. Este espaço encoberto e misterioso, como se de uma floresta densa se tratasse, precisa de uma arquitectura, mesmo que simbólica, para o fazer aparecer. A palavra arquitectura vem do grego arkhé, que significa primeiro ou principal, e tékhton, que significa construção, ou seja, construção primária. Assim, a obra de arte estará disponível para surgir perante a abertura da possibilidade do encontro entre natureza e arquitectura.

 

INÊS NORTON

Do meu lugar, o que eu vejo | 2018

Quartel da Arte Contemporânea de Abrantes, colecção Figueiredo Ribeiro

(Por Susana Rodrigues)

A exposição da artista Inês Norton, Do meu lugar, o que eu vejo, leva-nos precisamente até ao lugar em que a artista se refugiou nos últimos anos. Um lugar onde a Natureza ainda impera e pode ser contemplada a seu tempo e, talvez por isso, ponha a nu toda a ação humana que a tenta dominar e, em simultâneo, replicar. Esta relação esquizofrénica do Homem com a Natureza tão premente no mundo capitalista em que vivemos aparece-nos aqui, em Abrantes, representada, por vezes, de forma irónica através de uma seleção de obras da artista feita pelo curador Hugo Dinis.

No espaço de arte quARTel, dedicado à coleção de Figueiredo Ribeiro, constam uma série de trabalhos de Inês Norton que vão desde instalação, fotografia, escultura e vídeo. À entrada da exposição a projeção de vídeo, A árvore quando morre, devolve à terra o que esta lhe emprestou (2017), utiliza a sombra de uma raíz suspensa no espaço por cabos de aço para ir construindo e animando a imagem que vemos projetada.  A terra que vai caindo e enterrando a raíz mais não é do que um mirífico momento de contemplação, numa alusão ao tempo, ao ciclo de vida da natureza em que tudo se transforma.

Na sala principal do piso 0 deparámo-nos com um conjunto de obras dispersas pelo chão e paredes. Algumas das peças poderão levar-nos até ao movimento minimalista, seja pela escolha dos materiais como o ferro, o vidro, a madeira, quer pelas formas simétricas e modulares que constituem algumas das suas instalações e esculturas.  Objetos industrializados, os chamados readymade, são integrados em alguns dos trabalhos tridimensionais. Contudo, num olhar mais atento, percebemos que o trabalho de Inês Norton ultrapassa o formalismo, abrangendo o poético e o ético. Into de Land (2018) trata-se de uma imagem composta por um corpo nu de mulher em sobreposição a elementos da natureza paisagística captados pela artista no lugar, uma referência ao belo e ao sensual que nos circunda, seja o corpo feminino, sejam as pedras que marcam o território e o passar do tempo e a vegetação que vai preenchendo e povoando esse espaço calcado por estas. Em contrapartida, a peça Camouflage (2018), uma caixa colocada no chão coberta de terra com alguns aparelhos eletrónicos enterrados, já nos remete para a falta de simbiose entre o Homem e a Natureza. E aqui não será inadequado trazer outras referências como o movimento que terá emergido nos anos oitenta, o Eco arte, seguido por artistas que de alguma forma demonstravam uma preocupação em relação à intervenção humana nos processos naturais. Ou então, e recuando ainda um pouco mais, o movimento Land Art, nascido nos finais dos anos 60, no sentido em que este terá surgido também, mas não só, como resposta ao nascimento do ambientalismo naquele período, rejeitando um mundo centrado no Homem em favor de um que vê o Homem como elemento de um ecossistema maior.

A provocação está presente nos trabalhos Behind the Post Card (2018) e All natural (2018), em que de forma irónica somos conduzidos até às manobras publicitárias e de marketing utilizadas cada vez mais por grandes multinacionais que tentam projetar uma imagem de quem se preocupa com a sustentabilidade para poderem capitalizar junto da opinião pública (e ao mesmo tempo seus consumidores) cada vez mais desperta para esses temas.

A ironia também se estende à peça situada no andar de cima do espaço expositivo, Escapismo insonorizado (2018), que ilustra uma tendência da sociedade atual que se dedica a recriar ambientes “naturais” como espaços de fuga e meditação perante a urbanidade ruidosa e sufocante.  Esta artificialidade está representada de forma mais literal na obra Synthetic playground (2018), um rolo de relva sintética que atravessa esse piso subindo até à parede como se de uma passadeira real se tratasse.

A forma como manipulamos a natureza e a integramos na ação do homem, descontextualizando-a, forçando-a, transformando-a, leva-nos até aos trabalhos Simbiose I (2018) e Simbiose II (2018) em que troncos, pedaços de musgo, e pedras são domesticados utilizando correntes e estruturas de ferro que mais parecem asfixiar esses elementos ao belo prazer da intervenção humana. Esta ação, é sabido, e cada vez mais experienciado, coloca em causa a sustentabilidade ambiental tal como a peça, Paisagem sustentável (2018), feita de lona de plástico com uma paisagem impressa e sustentada por um grampo nos ilustra de forma metafórica. Por outro lado, na instalação Unrooted (2013), já se apresenta o elemento natural em lugar de destaque.  Neste caso vários troncos de árvore numa relação harmoniosa com o material ferro, a luz, e o desenho.

Nesta exposição a artista Inês Norton recorre, sobretudo, às formas híbridas da escultura, fotografia, e arquitetura, as quais traduzem as fortes relações entre a humanidade e a natureza. Entrar nela ultrapassa uma experiência estética, leva-nos a questionar as idiossincrasias em que vivemos.  Anuímos na importância da preservação da natureza para o equilíbrio do ecossistema ao mesmo tempo que a desvalorizamos e a subvertemos em prol do avanço industrial e tecnológico e da sociedade consumista em que vivemos. Esse lugar onde a artista nos faz transportar é uma forma de nos fazer ver também. Leva-nos a refletir, a contemplar, e a admirar, ao mesmo tempo que nos indigna e revolta. É uma análise social e política, mas também pessoal. A transubstanciação ocorre quando, como espectadores, formos capazes de decifrar, interpretar e acrescentarmos a nossa própria contribuição ao processo criativo, tal como dizia Duchamp.